sexta-feira, 8 de agosto de 2008

Todo o tempo do mundo...




...Quatro e trinta e cinco da madrugada.
O relógio no pequeno rádio pisca em vermelho vivo a dizer-me que é tarde. Não me importo. O vento forte e frio e húmido entra pelas aberturas na porta e faz estremecer as paredes. As portas do sótão nos esconsos fazem um ruído que assusta de batidos incertos conforme a força do vento. Eu estou aqui. A janela sem as cortinas corridas aberta para a noite fria e ventosa por onde espreito a chegada da maré viva à praia deserta de nós. Imagino-te outra vez. Desejo-te outra vez e afogo-te em mais gole deste vinho ácido que me queima por dentro e me faz estar assim, velho, inútil, abandonado, bêbado nesta hora aqui a olhar o mundo deste pedaço de quarto onde habito agora. As noites desde que me mudei para aqui são dolorosas, em vigília sem sono, sofro de alucinações que me fazem ver cabos e velas rasgadas nas paredes, e ventos furiosos e temporais e gritos e naufrágios e companheiros que desaparecem borda fora numa volta de mar e tenho medo. Medo sim de estar aqui preso inválido sem forças, vencido por uma saudade silenciosa que me rouba a vontade e não me permite ir ate à praia de novo em busca dos restos de ti. O teu naufrágio doloroso em mim. A carcaça só navio, imponente que foste por dentro de mim. O mar onde naveguei temerário a desafiar as tempestades a desafiar os medos a desafiar os dias cíclicos e o sentir. Sinto-te. Sinto-te como quando tinha trinta anos e estava convencido que numa mão virava o mundo todo porque te amava. Agora já não. Tenho medo. Estou velho e só aqui, e a minha história de vida é desconhecida para aqueles que não sabem quem sou e não suspeitam do amor que guardo puro e níveo e inocente em mim. Espécie de segredo amaldiçoado que me persegue...

João marinheiro Março de 2008, Excerto

2 comentários:

Pearl disse...

Adorei ler este pedaço de ti, não sei ficticio se real, mas verdadeiramente visivel aos meus olhos...quase que te vi!

beijo

Anônimo disse...

Olá !

Hoje dei comigo a descobrir o "ultimo coração" de um poeta.
Ou será o poeta de um ultimo coração?
Sejas qual deles fores (ou nenhum dos dois ), tinha mesmo de te dizer que acabei por ficar "presa" ao gosto de te ler!
E já que assim é, espero que não pares de te transcrever....... e eu poderei continuar a fazer pausas deliciosas durante os dias entediantes de trabalho!
Desejo-te tudo de bom.

( escolhi este post para comentar o blog essencialmente pela musica,talvez das minhas predilectas.)